"Não há melhor país para um cronista senão Portugal. Numa semana, está prestes a ser implantado um regime fascista. Na outra, já toda a gente se esqueceu disso..."
(Rui Tavares, Público de ontem)
Nas minhas deambulações urbanas pelo Porto, tenho verificado que todos os cafés, restaurantes, etc., desta cidade optaram pela proibição total de fumar. Foi já irritado com isto que descobri duas excepções: o restaurante Shakesbeer e o shopping Parque Nascente, que intoduziram espaços para fumadores.
Decidi então adicionar à barra direita do Altermundo, para condizer com o novo autocolante azul deste liberal espaço, uma lista de locais onde seja permitido fumar. Conto para isso com a vossa ajuda, ilustres e irredutíveis gauleses leitores deste blog, dizendo-me locais - centros comerciais, restaurantes, bares, tascas, qualquer lúgubre tugúrio deste nosso paternal rectângulo - onde saibam que também é permitido fumar.
PS - apelo já agora ao voto nas belas sondagens (pelo menos acho que as cores são bonitas!) que coloquei aqui e onde ainda ninguém participou.
Primeiro dia da era d.f., ou seja, depois do fascismo.
Sinto-me estranho hoje.
Sinto olhos cravados nas minhas costas.
Sinto-me observado por silenciosos vigilantes, zelando para que me mantenha parte da secção "saudável" da população.
Sinto que vivo num país que se tornou hoje definitivamente paranóico e fascizante.
Sinto que o big brother está nas ruas e que me espia em cada esquina.
Sinto que, com 24 anos de atraso, George Orwell tinha razão.
Deixo para os próximos dias um post de fundo sobre esta questão. Para já, deixo apenas um apelo a quem se sinta tão incomodado como eu com esta lei, fumador ou não, pouco importa:
sempre que entrem num sítio onde passou a ser proibido fumar (centros comerciais, restaurantes, cafés, hotéis), façam de conta que estão a fumar, tenham sempre um cigarro nos lábios ou nos dedos
É um acto de protesto inútil, eu sei, mas já fiz isto hoje e sabe muito bem quando um segurança se dirige a nós ou quando ouvimos comentários maldosos nas nossas costas. Não serve para mais nada, mas trará ao menos um sorriso aos lábios e sossega a nossa alma atormentada pelo definitivo estabelecimento de uma sociedade fascista, paranóica, abjectamente paternalista.
Hoje, o pequeno fascista que vive ainda e sempre dentro de cada português rejubila, sente vibrar dentro de si a pulsão da salazarista delação.
Anunciada há algum tempo, a onda "fascizóide" anti-tabágica chegou finalmente a Portugal, com a aprovação pelo Governo da nova lei anti-tabaco. Mais uma vez, colocamo-nos em linha com a generalidade da Europa (os países que ainda não têm uma lei deste género para lá caminham), desta vez pelos maus motivos: um paternalismo de Estado (que as declarações de Cavaco
prenunciavam há um par de semanas) que se julgava enterrado há muito, "fascizante" no sentido em que se quer obrigar os portugueses a terem boa saúde, independentemente e por cima da sua individual liberdade e arbítrio.
Nas palavras do Público:
"a proibição liminar de fumar em bares e restaurantes com menos de 100 metros quadrados é uma grave ingerência do Estado na esfera dos direitos individuais. Quem fuma deve ter a liberdade de poder escolher os lugares públicos que frequenta."Não sou fumador, já o fui - e supostamente é este o grupo que mais ardentemente se torna anti-tabaco - mas sou completamente contra medidas deste género. Pondero mesmo, em protesto, passar a andar com um cigarro (apagado)nos dedos ou nos lábios, como forma de protesto - pelo menos, de chatear as pessoas que me venham dizer "desculpe, aqui não se pode fumar" e eu responder "eu não estou a fumar".
Acredito que leis destas resultem no sentido de reduzir o número de fumadores, mas de forma completamente ilegítima num Estado de direito que respeita a liberdade das pessoas. Claro que como a maior parte delas (não-fumadores) apoia que se limite a liberdade (dos outros) a favor de direitos supostamente superiores (a saúde) está tudo bem...
Em que raio de sistema é que a saúde é um direito superior à liberdade individual??!
A semana passada, pelo meio do ruído da campanha para o referendo, passaram praticamente despercebidas declarações de Cavaco Silva que são muito mais graves do que o destaque que tiveram e que merecem a nossa maior consternação.
Numa sessão da Academia Portuguesa de Medicina para que foi convidado, Cavaco aproveitou o tema da saúde dos portugueseses para pedir à Assembleia da República que se debruçasse sobre "a necessidade de legislação e procedimentos administrativos claros, não só sobre o tabagismo, mas no combate ao consumo excessivo de álcool, obesidade e estilos de vida sedentários".
Teremos então dentro de pouco tempo, a fazer fé no zelo legislador dos deputados e na sua vontade de cair nas boas graças presidenciais, a proibição total de fumar. Com um pouco de sorte, haverá bares autorizados a serem excepções à Lei Seca que será decretada. Tudo em nome da saúde dos portugueses, claro, e porque estes, sabendo que o tabaco e o álcool são prejudiciais, precisam que o Grande Irmão os faça deixar de consumi-los, pois por si só nunca conseguiriam - e que cidadão responsável e ajuizado poderá querer continuar e a fumar sabendo que isso é mau para a sua saúde? Ajudemo-lo portanto e proibamos o tabaco e o álcool!
Claro que os nossos restaurantes, churrasqueiras e outros estabelecimentos especializados em feijoadas, rodízios, cozidos à portuguesa, rojões à minhota, chanfanas, tripas à moda do Porto, morcelas assadas, alheiras de Mirandela e demais patuscadas tipicamente portuguesas terão também de sofrer restrições, em nome do combate à obesidade. Quem consegue imaginar que um responsável e ajuizado cidadão português possa preferir um prato saboroso, típico e servido nas doses cavalares da praxe, quando sabe que a nossa comida típica engorda tanto?
Arriscamo-nos mesmo a ver batalhões de portugueses a correr disciplinada e militarmente pelas ruas, ar cabisbaixo e t-shirt do Clube do Stress - em nome, claro está, de um estilo de vida saudável e do fim do sedentarismo? Pois qual seria o cidadão português responsável e ajuizado que preferiria ficar alapado no sofá a ver a bola ou os Morangos com Açúcar, de cerveja na mão (proibidíssima claro!!), quando sabe que isso aumenta os riscos de morrer de ataque cardíaco?
Isto parece uma ficção exagerada - e é - adaptando fantasiosamente a trama de 1984. Mas se tão canino zelo legislativo não corre o risco de se tornar realidade, são estas as liberdades que estão em causa. De momento regozijamos com uma liberdade recém-conquistada, senão para todos pelo menos para as mulheres, mas isso não nos pode nem deve impedir de nos alarmarmos com o caminho, que já começou a ser trilhado, para que outras fundamentais liberdades sejam cerceadas.
Voltando a Cavaco , confesso que só fui alertado para estas declarações por uma amiga, que me disse que apenas Vasco Pulido Valente e Constança Cunha e Sá, em crónicas distintas no Público, falaram disto. Confesso não apreciar as personagens, mas fui à procura das crónicas para melhor perceber o que estava em causa.
E é de facto grave, sobretudo por tudo isto ter passado por entre as gotas da chuva... e como Constança Cunha e Sá (VPV também) o diz melhor que eu - colocando a tónica não só na restrição das liberdades individuais, mas também na sacralização da saúde que está por trás deste zelo big-brotheriano - aqui ficam os excerto da crónica mais relevantes:
"A religião do Estado
"A intromissão do Estado nos hábitos privados dos cidadãos tornou-se um lugar-comum das sociedades contemporâneas.
O Estado, que tanto incomoda em questões morais como o aborto, transforma-se, consensualmente, num polícia de costumes, quando o que está em causa é a saúde dos cidadãos.
Mantendo o seu silêncio de Estado sobre o referendo ao aborto, o Presidente da República aproveitou uma sessão da Academia Portuguesa de Medicina para se debruçar, com inexcedível zelo, sobre a saúde dos portugueses. Entre o direito à vida, a dignidade da mulher e o alarido inconsequente deste estafado debate, o prof. Cavaco Silva optou prudentemente por um tema mais consensual, defendendo - e passo a citar - "a necessidade de legislação e procedimentos administrativos claros, não só sobre o tabagismo, mas no combate ao consumo excessivo de álcool, obesidade e estilos de vida sedentários". Como é natural, as palavras do Presidente passaram mais ou menos desapercebidas. A intromissão do Estado nos hábitos privados dos cidadãos tornou-se um lugar-comum das sociedades contemporâneas. O Estado, que tanto incomoda em questões morais como o aborto, transforma-se, consensualmente, num polícia de costumes, quando o que está em causa é a saúde dos cidadãos.
(...) Aparentemente, ninguém acha estranho (ou sequer levemente suspeito) que o Presidente nos queira obrigar, através de "procedimentos administrativos claros", a trocar o almoço pelo ginásio e o conforto do sofá pelo esforço de uma corrida diária.
Depois do antitabagismo primário que invadiu a Europa a partir dos Estados Unidos e do combate mais recente contra a obesidade infantil e a má alimentação das criancinhas, só faltava preencher esta lacuna legislativa e obrigar os cidadãos a abandonar os seus "estilos de vida sedentários" (...)
... é difícil prever os extremos a que chegará este culto recente pela saúde que faz da longevidade um bem em si mesmo e transforma a forma física num valor universal e absoluto. Por razões misteriosas, o Estado que não tem dinheiro para nos pagar a reforma obriga-nos a ter uma vida longa e saudável e a morrer tarde e a más horas, com os pulmões limpos e os músculos em forma. Para eliminar a doença e não sobrecarregar o Serviço Nacional de Saúde com intervenções desnecessárias, decorrentes dos vícios dos utentes e dos seus irreparáveis maus hábitos? Infelizmente, a doença não se elimina: a crença numa espécie humana saudável e asséptica, livre das fraquezas que a caracterizam, é um mito contemporâneo que abre a porta aos mais perigosos delírios.
Mas, nos tempos que correm, o medo do inferno foi substituído pelo horror à doença e a crença na eternidade deu lugar ao sonho de uma longa e saudável vida na terra. A saúde é que nos resta, num mundo donde o sagrado desapareceu, deixando em seu lugar uma crença alimentada pelo medo da morte e pelos progressos da medicina. No Ocidente laico e tolerante, onde as religiões tradicionais foram remetidas a uma esfera puramente privada, a saúde transformou-se na religião oficial do Estado, que impõe coercivamente os seus valores através, como diria o prof. Cavaco Silva, de "procedimentos administrativos claros". Ninguém põe em causa os dogmas da saúde - porque só na saúde se encontra ainda uma verdade única e universal, regulamentada por um Estado que tem o dever de zelar pelos hábitos dos seus cidadãos.
Não admira que numa sociedade dominada pelo culto da saúde, promovido e imposto pelo Estado, os hospitais se encham de multidões de "crentes" que entopem as Urgências perante o mais leve sintoma e que não prescindem dos últimos avanços da medicina. O que já é de admirar é que o Estado, que impulsiona esta fé e este insustentável estado de coisas, se sinta depois no direito de impor taxas moderadoras - fingindo não perceber que a necessidade de moderação decorre do desespero que é por si próprio impulsionado. Se o Estado exige que os seus cidadãos vivam até aos cem anos, livres de achaques e de mazelas, não pode depois esperar que estes não se deixem contagiar por esta dolorosa fantasia. Os hospitais são as igrejas dos nossos dias."