Na segunda-feira decorreu o segundo e derradeiro debate entre Rodríguez Zapatero e Mariano Rajoy, candidatos do PSOE e do PP a chefe de governo espanhol nas eleições legislativas do próximo domingo. Acompanhei-o com muita curiosidade, a fim de tentar compreender as idiossincrasias que tornam a política espanhola tão
sui generis. Não fiquei muito esclarecido quanto a isso, mas foi interessante perceber como é possível acompanhar um debate eleitoral de sorriso nos lábios - algo totalmente impossível em Portugal. Não pelo brilhantismo retórico ou pelo carisma dos candidatos, mas antes pelo tipo de argumentos que utilizam para se atacarem um ao outro, o que de resto fizeram durante 90% do tempo, em vez de tentar explicar as suas propostas aos eleitores que estariam a assistir ao debate. Desde rodas de bicicleta (Zapatero acusou Rajoy de permitir a legalização de imigrantes ilegais com base no recibo de uma roda de bicicleta) a tabuletas no exterior de lojas (Rajoy acusou Zapatero de fazer com que um comerciante - catalão, claro - seja multado por ter a tabuleta da sua loja em espanhol), tudo serve de armas de arremesso, e todo o passado é rebuscado até ao mais ínfimo detalhe (boa parte do tempo foi passado a discutir se a primeira pergunta de Rajoy no parlamento espanhol em 2004 tinha ou não tido a ver com economia).
Neste aspecto, em Portugal os debates já estão muito à frente da realidade espanhola: a era dos gráficos falaciosos de cores garridas brandidos por candidatos e das batatas em cima da mesa de debate já passou (não que a falácia e a demagogia tenham deixado de ser utilizados, mas agora são apenas verbais, tornaram-se mais requintadas). Talvez isso suceda porque em Espanha a crispação política é tão grande que este foi apenas o primeiro debate televisivo em 12 anos, algo de todo impensável deste lado da fronteira.
Mas de fazer rir mesmo é ouvir os comentadores pós-debate pegar nos mesmíssimos factos e interpretá-los de forma totalmente oposta (e este debate correu sem dúvida alguma melhor a Zapatero) consoante a sua convicção política: para uns uma frase em concreto de Zapatero pode ter sido assertiva, para outros ele foi muito mal educado; um argumento de Rajoy pode ter-se limitado a criticar o oponente sem tentar explicar as suas propostas, ou pode ter sido simplesmente brilhante a explorar os pontos fracos do adversário.
Isto não é no entanto nada de novo em Espanha, pois é exactamente o que fazem nos
media o "El Pais" e o "El Mundo", que todos os dias pintam as mesmas notícias de cores tão diferentes que muitos espanhóis compram diariamente ambos os jornais (tanto um como outro de excelente qualidade, é preciso dizer) para conseguirem ter uma visão razoavelmente imparcial - embora definitivamente esquizofrénica.
PS - A crispação política em Espanha dava sinais de ter abrandado no princípio deste século, mas recrudesceu enormemente entretanto, fruto do apoio à guerra do Iraque e às mentiras do 11 de Março, por um lado; e à legalização do casamento e adopção por homossexuais, ao fim da obrigatoriedade da disciplina de Religião nas escolas e outras políticas sociais, por outro. Para compreender as razões de tão inultrapassável abismo, nada melhor que o aritgo de Pedro Magalhães no Público de segunda-feira. Excertos:
"À partida, pareceria que poucos países poderiam apresentar condições tão desfavoráveis para uma transição pacífica, com elites políticas que se encontravam profunda e historicamente divididas em redor de temas tão centrais como o modelo económico e social, as relações entre o Estado e a Igreja, a inserção geoestratégica do país, a forma de estado ou a forma de governo. Mas, na verdade, as "duas Espanhas travadas em luta incessante", como escreveu Ortega y Gasset, acabaram surpreendentemente por encontrar a paz num processo mil vezes estudado de negociação e conciliação de interesses, à sombra da memória recente de uma das guerras mais selváticas da história da civilização ocidental.
(...) Por estes dias, contudo, Espanha desperta o interesse dos especialistas por razões bastante distintas. Uma das coisas que durante algum tempo se julgou saber sobre o comportamento eleitoral é que a modernização tenderia a enfraquecer a ancoragem social do eleitorado. (...) No máximo, poderiam contar apenas com bases formadas por indivíduos com atitudes e valores semelhantes, mas sem laços sociais claros entre si e, de resto, com opiniões heterogéneas sobre a multiplicidade de temas em jogo numa eleição. E, neste cenário, as escolhas eleitorais reorientar-se-iam cada vez mais para critérios de desempenho e eficiência.
Mas, nos últimos anos, Espanha vem fornecendo uma excelente ilustração de como essas alegadas tendências são tudo menos inexoráveis (...) a classe social a que os eleitores pertencem vem crescendo de importância na explicação do comportamento de voto dos espanhóis, sendo igualmente visível, desde 2000, um aumento de importância da religiosidade como factor explicativo do voto. Um dos reflexos desta crescente ancoragem social do voto é visível quer nos últimos resultados eleitorais, quer nas sondagens para as eleições de 9 de Março próximo: (...) os votantes espanhóis em 2004 e 2008 parecem divididos em dois grandes blocos quase completamente estanques.
(...) A criação desta profunda clivagem que hoje parece atravessar Espanha remonta a 2000 e à vitória do PP por maioria absoluta nas eleições desse ano [fruto da] moderação ideológica e aceitação das regras do jogo da democracia espanhola.
(...) Contudo, o PP decidiu interpretar a vitória de 2000 de outra forma, como sintoma de um realinhamento eleitoral dos espanhóis à direita. O que se viu de seguida foi que a sua moderação, afinal, tinha sido meramente táctica, fruto da circunstância de não dispor de uma maioria absoluta. Entre 2000 e 2004, assistiu-se a um mandato de confrontação total com os sindicatos, com os nacionalismos, com a oposição parlamentar e, no tema do Iraque, com toda a sociedade espanhola.
(...) E como a derrota do PP em 2004 não foi digerida pelo partido como legítima ou até legal, não se tirou dela quaisquer ilações que não fossem a de um reforço da estratégia de confrontação. Nem o PSOE, desde então, tem abdicado de alimentar estas clivagens quando pressente que, mesmo que dividindo a Espanha em duas, pode ficar com a maior parte.
(...) O consenso não é em si mesmo uma virtude, algo que os abundantes (e em grande medida falsos) consensos na política portuguesa e a inacção que deles resultam demonstram amplamente. Mas a ausência de quaisquer bases para um consenso entre os dois maiores partidos espanhóis em temas tão centrais como a defesa e a política externa, a luta contra o terrorismo, os poderes e as competências das comunidades autónomas ou a justiça só pode ser vista como perturbante."