Li ontem no Público algo que me fez reflectir sobre o
agravamento da situação na Somália. A notícia fala de acusações, constantes num relatório de observadores da ONU, a Damasco e Teerão, supostamente envolvidos em esquemas de venda de armas aos islamistas dos Tribunais Islâmicos, que controlam neste momento a maior parte do país, incluindo a capital, Mogadiscio, e de treino a milícias ligadas a estes através do Hezbollah.
O suposto envolvimento sírio e iraniano - prontamente desmentido por responsáveis diplomáticos dos dois países - parece-me plausível e com motivações relativamente claras pelas afinidades ideológicas entre o
Hezbollah e os
Tribunais Islâmicos. O que me alarmou mais, e me fez pensar, foi a parte da notícia onde se acusam outros países de envolvimento:
"(...) o documento da ONU refere que pelo menos sete países - entre eles o Irão e a Síria - estão a fornecer armamento e treino militar às milícias islâmicas, que querem impor a sharia, a lei corânica. Outras três nações fazem o mesmo em relação ao Governo.Os relatores acusam a Etiópia e a Eritreia - nos apoios dados, respectivamente, ao governo em Baidoa e à união dos Tribunais em Mogadíscio - de serem os principais violadores do embargo decretado pelas Nações Unidas em 1992. O Djibuti, a Líbia, o Egipto e ainda mais "alguns países do Médio Oriente" terão também canalizado ajuda aos islamistas via Eritreia, que foi "apanhada" em pelo menos 28 fornecimentos de armamento e no envio de mais de dois mil soldados para a Somália.O documento da ONU denuncia ainda a existência de uma ligação entre os islamistas somalis e o movimento xiita libanês Hezbollah (apoiado por Teerão e Damasco), explicitando que este Partido de Deus está a treinar os guerrilheiros da associação dos Tribunais Islâmicos. É mencionado, aliás, que mais de 700 guerrilheiros islamistas estiveram em Julho no Líbano, a lutar ao lado do Hezbollah na guerra contra Israel."O interesse da
Etiópia em envolver-se é claro. Trata-se de uma questão que mexe directamente com ela, por se desenrolar mesmo junto às suas fronteiras e ter implicações político-militares no próprio país, inimigo histórico da Somália (os dois países já se envolveram em diversas guerras), e para a qual consegue granjear o apoio de um ou dois aliados regionais a quem também não interessa um estandarte extremista islâmico no corno de África.
Da mesma forma, e no campo oposto, é claro o interesse da Eritreia em apoiar os Tribunais Islâmicos, dada a inimizade também entre os Eritreus e a Etiópia, da qual aliás a Eritreia fazia parte até à
secessão e posterior independência, em 1993. O apoio do
Djibuti poderá ser explicado, da mesma forma, pelo complexo jogo de interesses e alianças regionais.
É bem mais obscuro, por outro lado, o interesse da Líbia, do Egipto e dos tais "vários países do Médio Oriente" em desestabilizar a região e apoiar um movimento extremista islâmico, algo que não é por norma tolerado mesmo dentro desses países...
A deriva islâmica e os apoios que surgem de uma e outra parte apenas auguram um cenário negro para o corno de África, uma das mais pobres regiões do mais pobre dos continentes, e que está muito perto de uma guerra à escala regional, de consequências devastadoras para as populações e mesmo para o quadro geoestratégico de toda a região do Nordeste africano, do Mar Vermelho e do Golfo Pérsico e Médio Oriente. O tabuleiro de jogo vai-se alargando...
PS - O título refere-se à Al Qaeda porque estou convencido de que a ascensão dos Tribunais Islâmicos tem muito que ver com o apoio da organização meta-terrorista. O processo tem aliás inquietantes paralelismos com o que se desenrolou no Afeganistão e levou os taliban ao poder... Mais ainda: estou consciente de que estou a dar um tiro no escuro, mas tenho um
wild guess em como a resposta à questão "onde está Bin Laden?" está intimamente relacionada com a Somália...