Retirado do Público de ontem:
"O Torino é um pequeno bar em Beirute. O único onde Mazen Kerbaj ainda vai. Há uma semana, sentado na mesa do fundo, com o seu mais recente auto-retrato em cima da mesa, Mazen disse: "Hoje é a mesma coisa que na véspera de 1975. Parece que não aprendemos com os nossos erros. Todos os que são líderes agora participaram na guerra civil e ninguém quer admitir que errou, toda a gente tinha razão. Nada mudou e nada mudará." O DJ estava a passar Bob Dylan. Uma rapariga que podia ter 14 anos mas tem 28 entrou e deu um beijo a Mazen, antes de acender um cigarro. Não lhe ocorreria dizer tal, mas é xiita. Tão xiita como Mazen é cristão maronita (no que depende deles, nada). Mazen nasceu em 1975 e nunca viveu fora do Líbano, o que quer dizer que de certa forma já viu tudo e reconhece o que viu: "Acho que estamos na véspera de uma nova guerra civil. Estou totalmente pessimista."Três dias depois Mazen partiu em digressão para a Europa levando a sua trompete (e alguns dos desenhos que fez durante a última guerra, como aquele em que está na varanda de casa a improvisar entre as bombas israelitas - registo em mp3 na Net). [trata-se do mesmo Mazen que possui um
blog onde coloca os seus desenhos, comentários e algumas impressões avulsas,
que em Agosto aqui destaquei... aqui fica de novo o destaque porque os seus desenhos de alguma forma alusivos à situação do seu país se tornam de novo relevantes...]
Estaria em Bruxelas à hora a que Pierre Gemayel foi assassinado. (...) É um nome cheio de ecos, Gemayel. Naturalmente, cada um o ouve do lugar em que está. Dizer que são cristãos maronitas é sobretudo dizer que pertencem a uma tribo. Como todos (sunitas, xiitas, drusos) entre 1975 e 1990 cortaram cabeças, abriram valas comuns, cuspiram por cima. E, ocasionalmente, morreram. Bashir Gemayel (tio do agora assassinado Pierre) era o líder da milícia falangista que massacrou centenas de palestinianos em Sabra e Shatila depois dele ter sido assassinado.Serem (cada vez mais) uma minoria, nunca impediu os maronitas de se verem como os melhores. Ainda recentemente, quando o Hezbollah e os xiitas vinham com exigências políticas em nome da maioria demográfica, o jovem Pierre Gemayel resumia assim este espírito: "Eles ameaçam com a quantidade. Nós temos a qualidade."Isto enfurece Mazen. Sobranceria, tribalismo, um país em que engravatados de hoje são ex-carniceiros e os principais órgãos de poder continuam a ser divididos por religiões (o Presidente para os cristãos, o primeiro-ministro para os sunitas, o presidente do parlamento para os xiitas...). "Não se pode viver numa democracia com sectarismo e confessionalismo. Aqui não há esquerda nem direita, todos os partidos se relacionam com religião."Como muita gente da geração de Mazen - os filhos da guerra civil - Sandra Dagher partilha esta repulsa em identificar as pessoas pela religião. A sua família é cristã maronita de Bekfaya, a mesma terra dos Gemayel, mas ela não sabe qual é a religião de vários dos artistas que acolhe no Espace SD, uma espécie de centro cultural privado em Beirute. É preciso alguém perguntar-lhe para ela se pôr a pensar se aquele será druso ou xiita - e no Líbano isso pode querer dizer que primos de ambos se chacinaram em algum momento.(...) De resto, Sandra está onde Mazen e muitos mais desta geração parecem estar, num lugar que não é do Governo e não é do Hezbollah. O lugar onde esta história acabaria, se a deixassem." (Alexandra Lucas Coelho)Sempre pensei que a tensão inter-confessional no Líbano é algo de artificial - como por exemplo na Bósnia - algo que vem de cima e faz parte integrante do discurso político, mas não da vida das pessoas. Os libaneses - pelo menos e a fazer fé na repórter, os "filhos da guerra civil" - não se preocupam com a confissão religiosa de cada um. No dia a dia, ser xiita, sunita, druso ou maronita é pouco mais que irrelevante.
Os políticos, oprtunistas aqui como em qualquer parte do mundo (mas aqui é mais grave porque jogam com a vida das pessoas, e não apenas com quem está no poder), utilizam um discurso sectário como forma de obtenção de benefícios, políticos e pessoais. O que leva a que quem tenha mais sucesso seja quem de forma mais eficaz consiga arregimentar a sua comunidade e, mais que isso, a situações como a vitória democraticamente legítima de um movimento como o Hamas - e que a haver novas eleições se arrisca a acontecer com o Hezbollah no Líbano.
E assim, em vez de se traçarem linhas divisórias baseadas nas diferentes ideias de cada partido, traçam-se fronteiras baseadas exclusivamente num só elemento, a religião, que é irrelevante para o quotidiano daqueles que é suposto darem o seu voto.
Reitero a ideia com que termina a reportagem do Público:
"um lugar que não é do Governo e não é do Hezbollah. O lugar onde esta história acabaria, se a deixassem."