“É possível que uma melhor compreensão do cérebro também venha um dia a incidir sobre questões sociais tão perturbadoras como a definição da morte e a aceitação do aborto. Aparentemente, a ética corrente no Ocidente permite matar, por uma boa causa, primatas não humanos e outros mamíferos, embora seja interdito (aos indivíduos) matar seres humanos em circunstâncias semelhantes. A implicação lógica deste facto é que a diferença é estabelecida pelas características do cérebro humano. Do mesmo modo, se partes substanciais do neocórtice1 estiverem em funcionamento, pode-se dizer que um doente em estado de coma está vivo no sentido humano, ainda que outras funções físicas e neurológicas estejam gravemente afectadas. Por outro lado, um doente vivo, mas que não manifeste qualquer sinal de actividade neocortical (incluindo as actividades neocorticais durante o sono) pode, num sentido humano, ser descrito como morto. Em muitos destes casos, o neocórtice deixou de funcionar irreversivelmente, mas o sistema límbico2, o complexo R3 e o tronco cerebral inferior ainda estão activos e certas funções fundamentais, como a respiração e a circulação sanguínea, não foram afectadas. (…)
Ideias deste género poderiam ajudar a solucionar o grande debate sobre o aborto que agitou os Estados Unidos no final da década de 70 – uma controvérsia caracterizada por uma extrema veemência de ambas as partes e pela negação de qualquer valor aos pontos de vista do opositor. Num extremo temos a posição segundo a qual a mulher tem um direito inato ao “controlo do seu próprio corpo”, que inclui, como se afirma, a decisão de matar o feto por uma série de motivos, incluindo a rejeição psicológica e a incapacidade económica de criar o filho. No outro extremo temos a existência de um “direito à vida”, a afirmação de que matar um simples zigoto, um ovo fertilizado antes da primeira divisão embrionária, é um crime, pois o zigoto é um ser humano “em potência”. Dou-me conta de que numa situação emocionalmente tão carregada é improvável que qualquer solução proposta seja aplaudida por parte dos defensores do outro extremo e, por vezes, os nossos corações e as nossas cabeças levam-nos a conclusões diferentes. Porém, com base em algumas das ideias apresentadas nos capítulos precedentes da presente obra, gostaria, pelo menos, de tentar oferecer um compromisso razoável.
é indubitável que a legalização do aborto evita a tragédia e a carnificina dos abortos clandestinos ilegais e praticados por pessoas incompetentes (…) um vasto acesso a abortos praticados por médicos pode responder a uma importante necessidade social. Mas o infanticídio também resolveria (…) e foi amplamente utilizado por muitas comunidades humanas, incluindo certos estratos da civilização grega clássica, que, de um modo geral, é considerada como o nosso antecedente cultural. E é largamente praticado nos nossos dias, pois há muitas regiões do mundo em que um em casa quatro bebés recém-nascidos não sobrevive para além do primeiro ano de vida. No entanto, segundo as nossas leis e costumes, o infanticídio é indubitavelmente considerado um crime. Uma vez que um bebé nascido prematuramente no sétimo mês de gravidez não é substancialmente diferente de um feto in utero no sétimo mês, daqui tem de decorrer, segundo me parece, que o aborto, pelo menos no último trimestre, se aproxima muito de um crime. Objecções como a afirmação de que o feto no terceiro trimestre ainda não respira parecem-me falaciosas: será possível cometer o infanticídio depois do nascimento se o cordão umbilical ainda não foi cortado e o bebé ainda não começou a respirar? De igual modo, se eu não estiver psicologicamente preparado para viver com um estranho – no dormitório do colégio ou na tropa, por exemplo – nem por isso tenho o direito de o matar, e a minha irritação com determinados usos do dinheiro que pago em impostos não vai até ao extermínio daqueles que recebem esses impostos. O ponto de vista das liberdades individuais torna muitas vezes confusos debates deste tipo. Por que motivo, perguntamo-nos por vezes, as convicções das outras pessoas sobre este assunto me haveriam de dizer respeito? Mas quem não está pessoalmente de acordo com a proibição convencional de assassinar é obrigado pela nossa sociedade e respeitar o código penal.
No pólo oposto da controvérsia, a frase “direito à vida” é um excelente exemplo de “chavão”, que se destina mais a inflamar os ânimos do que a esclarecer. Não há qualquer direito à vida em nenhuma das sociedades da Terra nos nossos dias e se esse direito também não existiu em épocas anteriores (com raras excepções, como os Jainas da Índia). Criamos gado para ser abatido; destruímos florestas; poluímos rios e lagos até os peixes não poderem aí viver; caçamos veados e alces por desporto, leopardos pelas suas peles e baleias para fazer comida para cães; aprisionamos golfinhos, que se ficam a debater em grandes redes para pescar atum e espancamos focas bebés até à morte para “controlo da população”. Todos estes animais e vegetais são tão vivos como nós. O que é protegido em muitas sociedades não é a vida, mas a vida humana. E, mesmo com esta protecção, infligimos guerras “modernas” a populações civis, com resultados tão terríveis que, na nossa maioria, tememos considerá-los muito aprofundadamente. Frequentemente, tais crimes em massa são justificados por redefinições raciais ou nacionalistas dos nossos opositores como sub-humanos.
De igual modo, o argumento sobre o ser humano “em potência” parece-me particularmente fraco. Qualquer óvulo ou espermatozóide humano em circunstâncias adequadas é potencialmente um ser humano. No entanto, a masturbação masculina e as poluções nocturnas são, de um modo geral, consideradas actos naturais, e não motivo para uma pessoa ser acusada de crime. Numa única ejaculação há espermatozóides suficientes para a geração de centenas de milhar de seres humanos. Além disso, é possível que num futuro não muito distante sejamos capazes de produzir um ser humano completo a partir de uma única célula tirada de qualquer parte do corpo do dador. Se assim for, qualquer célula do meu corpo é um ser humano em potência se for convenientemente preservada até esta tecnologia poder ser aplicada. Estarei a cometer um massacre se picar um dedo e perder uma gota de sangue?
É evidente que estas questões são complexas. A solução, também é evidente, tem de envolver um compromisso entre um certo número de valores aceites, mas contraditórios. O problema fundamental consiste em definir em que momento o feto se torna humano. Não por ter uma forma humana, pois um produto resultante de materiais orgânicos que se assemelhasse a um ser humano, mas que fosse construído com esse objectivo, por certo não seria considerado humano. De igual modo, um ser extraterrestre inteligente que não se assemelhasse aos seres humanos, mas que desse prova de realizações éticas, intelectuais e artísticas superiores às nossas, por certo seria abrangido pela nossa interdição de matar. Não é o nosso aspecto, mas aquilo que somos, que nos define como seres humanos. A razão pela qual proibimos matar seres humanos é qualquer qualidade que estes possuem, uma qualidade que prezamos particularmente e que só encontramos em poucos – ou nenhuns – outros organismos da Terra. E não se pode tratar da capacidade de sentir dor ou emoções profundas, pois esta característica existe em muiitos dos animais que massacramos gratuitamente.
Penso que esta qualidade humana essencial só pode ser a nossa inteligência. Neste caso, o valor particular que atribuímos à vida humana pode ser identificado com o desenvolvimento e funcionamento do neocórtice. Não podemos falar do seu pleno desenvolvimento, pois este só se verifica muitos anos após o nascimento. Mas talvez possamos situar a transição para a humanidade no momento em que tem início a actividade neocortical, o que é determinado por electroencefalogramas do feto. Podemos fazer uma ideia do momento em que o cérebro começa a manifestar características nitidamente humanas a partir de observações embriológicas extremamente simples [relacionadas com o estádio de desenvolvimento e forma do cérebro]. Até à data, têm sido realizados muito poucos trabalhos neste campo e julgo que uma tal investigação poderia desempenhar um papel essencial com vista a conseguir um compromisso aceitável no debate sobre o aborto. É indubitável que haveria uma variação de feto para feto no que respeita ao momento em que têm início os primeiros sinais neocorticais registados pelo EEG e uma definição legal do início da vida humana deveria ter por base o feto que mais precocemente manifestasse essa actividade. Talvez a transição se verificasse por volta do final do primeiro trimestre ou do início do primeiro trimestre de gravidez [estudos mais recentes, ao que parece, vão apontando estádios cada vez mais precoces do desenvolvimento embrionário em que este tipo de actividade cerebral é detectada, indo tão longe quanto sugeri-la por volta das 8 semanas de gravidez…]. (Estamos aqui a falar daquilo que, numa sociedade racional, deveria ser proibido por lei: qualquer pessoa que considerasse crime praticar um aborto de um feto mais novo não teria a obrigação legal de aceitar e realizar tal aborto.)”
1 Neocórtice ou córtice cerebral: nos seres humanos e nos mamíferos superiores, a grande camada que reveste os hemisférios cerebrais, em grande medida responsável pelo nosso comportamento de seres humanos.
2 Sistema límbico: a parte do cérebro anterior intermédia, quanto à localização e antiguidade, situada entre o complexo R e o neocórtice.
3 Complexo R ou complexo reptiliano: do ponto de vista evolutivo, a parte mais antiga do cérebro anterior, e ligada às actividades cerebrais mais básicas, sobretudo as inconscientes (circulação sanguínea, respiração, digestão…)
O chefe viu:
"Nightwatchers", Peter Greenaway
"The Happening", M. Night Shyamalan
"Blade Runner" (final cut), Ridley Scott
O chefe está a ler:
"Entre os Dois Palácios", Naguib Mahfouz
O chefe tem ouvido:
Clap Your Hands Say Yeah, Some Loud Thunder
Radiohead, In Rainbows
o tempo'a o mo'es
Sondagens presidenciais americanas
Comércio Justo (Cores do Globo)
irredutíveis gauleses
fervida água
...com um farrapo de leite
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