Ainda a propósito deste "pequeno" passo rumo à barbárie total, transcrevo um comentário que li no Público de hoje, e que toca em alguns pontos muito relevantes para o que digo:
"Sentença irrelevante face ao que se vive no Iraque
"A possibilidade de não condenação à morte de Saddam Hussein era praticamente nula num julgamento que, embora procurando respeitar formalmente os rituais tradicionais, se destinava, essencialmente, a, de forma simbólica e definitiva, pôr termo ao seu poder.
Se ninguém terá grandes dúvidas que Saddam Hussein cometeu os crimes porque foi condenado que, no essencial, não negou e muitos mais, também ninguém terá dúvidas que o seu julgamento foi um julgamento, antes do mais, político. Disso não teve dúvidas, o próprio Saddam Hussein que, recolhendo os ensinamentos teorizados pelo advogado Jacques Vergés, optou por uma "defesa de ruptura", não se defendendo, particularmente, dos factos de que era acusado mas antes atacando a legitimidade do tribunal que o julgava. Um tribunal constituído de forma pouco transparente e em que o juiz presidente, apesar da confiança que nele depositavam os novos poderes iraquianos e os EUA, se veio a afastar por pressões políticas sendo substituído por um juiz, este sim, de inteira confiança. Se a isto acrescentarmos o assassínio de três advogados da defesa de Saddam Hussein, não nos precisamos sequer de lembrar dos inúmeros incidentes ocorridos ao longo do julgamento, com expulsões dos réus da sala de audiências e greves de fome, para concluirmos que este processo e a sentença proferida não se enquadram naquilo a que, usualmente, chamamos Justiça. Tanto a Amnistia Internacional como a Human Rights Watch foram, de resto, claras ao apontarem as insuficiências deste processo.
Saddam Hussein deveria ter sido julgado por um tribunal internacional, independente e imparcial, tendo em conta o facto de estarem em causa crimes contra a humanidade bem como a forma como foi deposto e obrigado a responder pelos seus crimes.
Mas, face a esta sentença, para além de entender que uma eventual morte nada acrescentará de positivo a todas as anteriores e de deplorar que a mesma tenha sido proferida de forma tão ajustada ao calendário eleitoral norte-americano, não posso, sobretudo, deixar de lamentar que a mesma já seja tão irrelevante face à situação que se vive no Iraque..."
Francisco Teixeira da Mota
Ao contrário do que diz J.M. Fernandes no editorial do mesmo jornal (e o que ele diz não devia ser escrito, já se sabe), o julgamento de Saddam foi quase exclusivamente de cariz político, e não é comparável nem de perto nem de longe aos de Nuremberga, nem em significado, nem muito menos em imparcialidade.
É verdade, como diz o autor do artigo que transcrevo, que poucas ou nenhumas dúvidas há de que Saddam Hussein é culpado dos crimes de que é acusado. Menos dúvidas tenho, no entanto, de que o julgamento esteve muito perto da farsa total, com momentos de fazer inveja ao melhor dos circos.
Qual maior espectáculo do mundo, tivemos a "honra" de assistir a advogados de defesa assassinados, tivemos um juiz parcial por gozar de simpatia por Saddam, que foi substituído por outro mais imparcial ainda: era familiar de curdos assassinados pelo ex-ditador em Halabja... Tivemos uma pena que todas as organizações de defesa dos Direitos Humanos, a maior parte dos países culturalmente civilizados e a totalidade das pessoas que já pensaram mais de 2 segundos sobre o assunto condenam incondicionalmente e, para cúmulo, proferida - repito, por um juiz escolhido a dedo pelos americanos para garantir a sentença desejada - na véspera de eleições nos Estados Unidos centradas como nunca em torno do Iraque e em que qualquer balão de oxigénio é bem vindo para os republicanos...
Nos dias - meses, anos - que correm, a morte de uma pessoa no Iraque é pouco mais que uma gota no oceano, um facto que quase nem chega a ser notícia, de tão banal. A morte anunciada de alguém é menos banal, para mais tratando-se de Saddam Hussein, mas nem por isso deixa de ser, objectivamente, uma outra gota no oceano. Afinal, é apenas uma vida, quando nos últimos dias se perdem dezenas delas, a maior parte delas bem mais inocentes que o ex-ditador.
Ora, sendo deste ponto de vista quase insignificante, a anunciada condenação à morte de Saddam Hussein pela ordem de assassínio de cerca de 140 aldeões de Dujail, presumidos implicados numa falhada tentativa de o matar, não deixa de ser terrivelmente simbólica. Como alguém que se opõe terminantemente à pena de morte, não posso deixar de me sentir revoltado.
Embora se soubesse já há muito tempo que iria ser esta a sentença (antes mesmo do término do julgamento mais significativo a que está a ser sujeito Saddam Hussein, pelo massacre da campanha Anfal - que eu muito gostaria que chegasse ao fim, pelo seu simbolismo, embora obviamente sem pena de morte), embora se tenha de relativizar uma morte mais num mar de barbárie quotidiana, o que ajuda a mitigar a minha revolta, é uma notícia duplamente simbólica - por se tratar de quem é, e pelo facto de condenar alguém à morte no Iraque de hoje ser, como disse acima, um passo mais no caminho da barbárie irreversível.
O primeiro grande tema que gostava de debater é precisamente as eleições iraquianas, marcadas para 30 de Janeiro. Mais precisamente, pretendo que de discuta se se deve manter a data marcada ou, pelo contrário e face à actual situação no Iraque, adiá-las: quais as vantagens e os riscos das duas opções. Neste momento não tenho tempo para explanar a minha posição, mas queria desde jã a vossa opinião para lançarmos o debate. Em breve colocarei a minha opinião!