Como já de alguma forma se antecipava há algum tempo, Salazar venceu a votação do
Maior Português de Sempre, gongoricamente promovida pela RTP desde há largos meses.
Conheço quem tenha entrado em choque com o resultado. Conheço quem se recuse a acreditar que 82.000 portugueses (41% dos 200.000 que foi dito terem votado) genuinamente pensem que Salazar é o maior português da nossa História de quase 900 anos. Conheço quem faça planos de emigrar para Espanha, ou para outro qualquer sítio onde um ditadorzeco não seja o maior do sítio.
Como conheço quem, não concordando, aplauda a escolha, por ser a manifestação de um descontentamento, um mal-estar, uma
malaise indefinida - um
spleen, à maneira dos absínticos escritores do séc. XIX - que perpassa e afecta o mais profundo da sociedade portuguesa.
Aplausos espúrios, penso eu. Se por um lado gosto do facto de a escolha permitir abrir o armário dos esqueletos onde durante tempo se escondeu, como tabu, tudo o que se referia ao Estado Novo, à ditadura, a Salazar (ainda hoje é difícil pronunciar este nome sem tremer, qual Voldemort português, "aquele cujo nome não se pode pronunciar"), e reconheça que se trata, apenas e só, de um programa de entretenimento que teve muitos defeitos mas a virtude de fazer com que se fale do que não é normalmente falado, por outro há algo que brota do mais profundo de mim, do lugar mais recôndito da minha consciência, lá onde se aloja tudo o que faz de mim aquilo que sou, algo que recusa, que não pode aceitar uma escolha destas.
Mesmo admitindo - e até certo ponto concordando - uma necessidade de protesto pelo estado a que isto chegou (o recurso a uma certa citação de há 33 anos é propositado), mesmo partilhando do tal mal-estar geral, mesmo sentindo também eu, e muito, o tal
spleen, não posso aceitar que essa necessidade de protesto gere um voto maciço num ditador que representa tanto daquilo que não se quer. É dizer que estamos mal, e que queremos mudar, mas em vez de ansiarmos por algo melhor, ansiarmos a voltar ao estado anterior, que nos esquecemos, ou queremos esquecer, que era pior.
Sim, estamos mal. Sim, é preciso mudar o estado a que isto chegou. Mas antes estávamos pior, e acho fantástica a dimensão do aspecto selectivo da memória. A memória colectiva é curta, sem dúvida, e muito, demasiado selectiva.
Para além disto, há o aspecto, também focado por alguns dos comentadores e defensores das personagens do
top 10 abordadas no derradeiro programa, da falta de cultura da população portuguesa, da falta de qualidade do ensino em Portugal. Eu, que me considero bastante mais culto que a média, nunca falei de Salazar, do Estado Novo, do 25 de Abril na escola. Tudo o que sei devo-o aos meus pais e ao meu voraz apetite por aprender. Ora a maior parte dos portugueses que nasceram depois de 1974, e sobretudo a esmagadora maioria dos que participam em votações como a dos Maiores Portugueses, não beneficia destes aspectos.
Para estes, Salazar é um personagem como outro qualquer, sem nenhum carácter particularmente malévolo ou indesejável. Se lhes dizem que havia alguém que "punha ordem na barraca", olhando para o actual estado das coisas e da nossa democracia essas pessoas sentem-se atraídas por esse personagem e votam nele.
Ao mesmo tempo, também se tornam mais permeáveis à manipulação e à persuasão daqueles que genuinamente acreditam e promovem Salazar, o Estado Novo, o "nacionalismo", e de caminho (esta é a parte que ocultam, ou tentam ocultar, para assim melhor convencer) a xenofobia, a intolerância, o repúdio pelos valores democráticos. São esses, os PNR, FN e afins que promoveram o voto em Salazar, e com estes argumentos o conseguiram alcandorar a "Maior Português de Sempre" - com aspas, muitas aspas...
(prefiro destacar que, facto referido ao de leve no programa, uma sondagem "verdadeira" - isto é, cientificamente preparada - resultou na escolha de D. Afonso Henriques como favorito dos portugueses, uma escolha bem mais consensual, como seria D. João II, ou o Infante D. Henrique, ou Camões).
O que é particularmente grave, em relação a esta promoção do voto em Salazar, é verificarmos que idêntica promoção por parte de um grupo legalmente organizado e com muitos milhares de simpatizantes - o PCP - só resultou em 19% de votos para Cunhal... Ou seja, e sendo a capacidade de organização dos "salazarentos", adjectivemo-los assim para conveniência, bem menor que a do PCP, ou a sua capacidade de persuasão é extraordinarimente boa, ou há muita gente por aí pronta a ser persuadida... Nesta perspectiva o sucesso na escolha de Salazar é o sinal mais alarmante até agora do rumo que as coisas estão a tomar, e do que não está a ser feito, por incapacidade ou, pior, por falta de vontade, para contrariar esse rumo.